Jorge
Amado contou e Caymmi cantou a Bahia e seus encantos, seu Mar, seu povo, a
beleza da mulher baiana e seu gingado. E viveram intensamente cada um com sua
Arte, nos deixando um arsenal de versos, canções, histórias escritas e cantadas
que nos transportam para a vida cotidiana dos nobres pescadores, dos
jangadeiros senhores do Mar, filhos de Iemanjá, como já diziam os mestres
Caymmi e Jorge Amado.
Caymmi
faria 100 anos agora no fim de Abril. Assisti uma homenagem belíssima ao seu
centenário com interpretações de Milton Nascimento, Danilo Caymmi e Paulo
Jobim, e fiquei atônito em frente à TV, vislumbrado com tanta genialidade. As
músicas de Caymmi embalam meus sonhos desde a meninice, pois meu Pai sempre foi
seu fã e colocava suas músicas para ouvirmos.
E agora me
deparei com essa carta de Caymmi a Jorge Amado que o Nelson publicou no DIÁRIO DO AVOANTE. Eu desconhecia essa carta. E fiquei mais uma vez paralisado diante
do gênio Caymmi:
“Jorge meu irmão, são onze e trinta da manhã e terminei de compor uma
linda canção para Yemanjá, pois o reflexo do sol desenha seu manto em nosso
mar, aqui na Pedra da Sereia. Quantas canções compus para Janaína, nem eu mesmo
sei, é minha mãe, dela nasci. Talvez Stela saiba, ela sabe tudo, que mulher,
duas iguais não existem, que foi que eu fiz de bom para merecê-la? Ela te manda
um beijo, outro para Zélia e eu morro de saudade de vocês. Quando vierem, me
tragam um pano africano para eu fazer uma túnica e ficar irresistível. Ontem
saí com Carybé, fomos buscar Camafeu na Rampa do Mercado, andamos por aí
trocando pernas, sentindo os cheiros, tantos, um perfume de vida ao sol, vendo
as cores, só de azuis contamos mais de quinze e havia um ocre na parede de uma
casa, nem te digo. Então ao voltar, pintei um quadro, tão bonito, irmão, de
causar inveja a Graciano. De inveja, Carybé quase morreu e Jenner, imagine!, se
fartou de elogiar, te juro. Um quadro simples: uma baiana, o tabuleiro com
abarás e acarajés e gente em volta.
Se eu tivesse tempo, ia ser pintor, ganhava uma fortuna. O que me falta
é tempo para pintar, compor vou compondo devagar e sempre, tu sabes como é,
música com pressa é aquela droga que tem às pampas sobrando por aí. O tempo que
tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô, conversar com
Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como
investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?
investir o dinheiro que não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar, não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra pintar?
Quero te dizer uma coisa que já te disse uma vez, há mais de vinte anos
quando te deu de viver na Europa e nunca mais voltavas: a Bahia está viva,
ainda lá, cada dia mais bonita, o firmamento azul, esse mar tão verde e o
povaréu. Por falar nisso, Stela de Oxóssi é a nova iyalorixá do Axé e, na festa
da consagração, ikedes e iaôs, todos na roça perguntavam onde anda Obá Arolu
que não veio ver sua irmã subir ao trono de rainha?
Pois ontem, às quatro da tarde, um pouco mais ou menos, saí com Carybé
e Camafeu a te procurar e não te encontrando, indagamos: que faz ele que não
está aqui se aqui é seu lugar? A lua de Londres, já dizia um poeta lusitano que
li numa antologia de meu tempo de menino, é merencória. A daqui é aquela lua.
Por que foi ele para a Inglaterra? Não é inglês, nem nada, que faz em Londres?
Um bom filho-da-puta é o que ele é, nosso irmãozinho.
Sabes que vendi a casa da Pedra da Sereia? Pois vendi. Fizeram um
edifício medonho bem em cima dela e anunciaram nos jornais: venha ser vizinho
de Dorival Caymmi. Então fiquei retado e vendi a casa, comprei um apartamento
na Pituba, vou ser vizinho de James e de João Ubaldo,
daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.
daquelas duas ‘línguas viperinas, veja que irresponsabilidade a minha.
Mas hoje, antes de me mudar, fiz essa canção para Yemanjá que fala em
peixe e em vento, em saveiro e no mestre do saveiro, no mar da Bahia. Nunca
soube falar de outras coisas. Dessas e de mulher. Dora, Marina, Adalgisa,
Anália, Rosa morena, como vais morena Rosa, quantas outras e todas, como sabes,
são a minha Stela com quem um dia me casei te tendo de padrinho. A bênção, meu
padrinho, Oxóssi te proteja nessas inglaterras, um beijo para Zélia, não
esqueçam de trazer meu pano africano, volte logo, tua casa é aqui e eu sou teu
irmão Caymmi”.
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