terça-feira, 7 de agosto de 2012

Ao Mestre Jangadeiro do Mucuripe

Verdadeiros Senhores do Mar, os mestres Jangadeiros. As velas do Mucuripe não saíram apenas para pescar. Foram muito longe pelas mãos do mestre da jangada, Sr. José Erenilson Severino Silva, nascido em Mucuripe. Teve a proeza de sair de Fortaleza rumo à Ilhabela-SP, 101 dias de mar, para depois ir de encontro ao Presidente da República, em Brasília, com o objetivo de conquistar melhorias para a vida dos pescadores cearenses.
Encontrei na net um relato dessa história, contada pelo Dep. Flávio Bezerra, em seu pronunciamento na Câmara dos Deputados (2008), que reproduzo abaixo (essa história também é contada pelo próprio José Erenilson em dois vídeos http://www.youtube.com/watch?v=sWz8QMP0sFs

Eis a história:

"Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, marisqueiras e pescadores, venho a esta tribuna para falar de um cearense, homem valente que revolucionou a história da pesca no Brasil.
Posso afirmar que a pesca tem 2 períodos: um antes e outro depois desse jangadeiro, que é mais conhecido como o mestre da jangada. Estou falando do Sr. José Eremilson Severino Silva.
Há 36 anos, o mestre da jangada saía de Fortaleza com destino a Ilha Bela, em São Paulo. Eram 5 pescadores. Antes de completar um terço do caminho, 3 deles voltaram com medo das tempestades. Eles queriam que o mestre voltasse também, mas ele disse que só voltaria morto e seguiu viagem mar adentro com seu companheiro, também chamado José.
O Sr. José Maria da Silva, o Zé Surrão, era um homem que valia por dez, um pescador realmente muito forte. Tinha esse apelido porque surrão é um saco que se enche de lagosta e não rasga fácil. Sujeito malfeito, entroncado.
Foram 101 dias de viagem. O objetivo era pedir ao Presidente da República aposentadoria para o pescador. Quando um deles morria nas praias, alguém precisava sair pedindo esmolas para enterrá-lo. Antes, porém, o mestre da jangada foi ao Governador do Estado - na época era o César Cals - pedir providências. Porém, o Governador respondeu que o Ceará não tinha recursos. E o mestre disse: "Então me dê uma jangada, que vou falar com o Presidente da República". O Governador respondeu: "Tu estás ficando doido?" E o mestre devolveu: "Dê-me uma jangada que, quando voltar, eu melhoro da cabeça". E o Governador insistiu: "Eu te dou uma passagem de avião, uma passagem de ônibus". E o cearense, já revoltado, disse: "Passagem de avião é para turista, e não vou fazer turismo. Sou pescador. Chegando lá de jangada, ele vai me dar mais atenção, porque vou pedir por mim e pelos que ficam".
Parece que essas palavras do jangadeiro doeram na consciência do Governador, que mandou entregarem a ele 10 contos de reis. Em seguida, o mestre foi ao Porto do Mucuripe e comprou por 7 contos a melhor jangada que havia. Media 35 palmos - uns sete metros e meio de cumprimento. Depois, foi tratar de escolher os companheiros para a viagem.
Para saber quem é bom jangadeiro e quem é ruim, temos de observar a convivência. Existe um provérbio que diz: "Eu nasci na aldeia e sou caboclo também". O que isso significa? Significa que trabalhamos com os companheiros e sem querer os observamos. Então já sabemos o que cada um vai fazer quando der vento. E além do Zé Surrão foram juntos 3 escoteiros do mar, que voltaram zunindo para casa do litoral de Pernambuco.
Para o mestre, não era possível comparar a viagem com as outras que fizeram para o sul, porque o mar, a qualquer hora, sempre pode ser perigoso de outra maneira. Basta um descuido, uma ponta de azar, uma onda maior, meio de banda, uma zoada de ventania, e aí não tem mais nenhuma história para contar. Cem dias no mar é um bocado de tempo, e tem espaço de sobra para acontecer quase tudo. Quantas ondas passam? Milhares, centenas de milhares. Porém, uma só basta. Um dia é 1 dia, 2 dias são 2 dias. Agora, em 100 dias o mundo pode virar de cabeça para baixo. Então a pessoa não volta mais para casa para ver novamente o feitio do rosto de sua família. Eles passaram por 12 temporais, contados.
O mestre relata que o primeiro temporal foi no Rio Grande do Norte, onde ficaram 3 dias fundeados, sem poder se defender da chuva nem do vento. Foi aí que alguns começaram a tremer e disseram: "Cuidado, cuidado, que nós vamos morrer". E o mestre avisou: "Preciso é que me dêem forças, não que me amedrontem".
O mestre afirma que só não foram bem recebidos em Recife. Lá havia um capitão dos portos chamado Ozibes, muito mal-educado. Era capitão de fragata. O mestre disse a ele: "Mal empregada a cadeira em que o senhor se senta". Então ele mandou prendê-lo com jangada e tudo. E ainda disse: "Você me ameaça?" O cearense respondeu: "Não estou ameaçando a pessoa de V.Exa., mas mostrando o meu valor, porque, se lhe der o cabo do leme de uma embarcação, o senhor não vai saber fazer coisíssima nenhuma". Ele era uma autoridade pequena para a autoridade maior que estava apoiando o mestre: o Almirante Moacir Mirabô de Carvalho, Presidente da Confederação Nacional de Pescadores. Então, o jangadeiro mandou um telegrama para ele, que chegou no Recife no dia seguinte, e perguntou: "O que está acontecendo?" "O comandante me prendeu porque não tenho carta náutica, não tenho bússola e nenhum aparelho de navegação", disse o mestre. O almirante ouviu-o em silêncio e depois advertiu: "Capitão, os homens são meus e são cearenses. Eles são patrimônios da minha terra e vão falar com o Presidente da República. Quero que você dê todo apoio a esses jovens e também que lhes ofereça todo o conforto, quando partirem outra vez".
Mais atencioso, o capitão dos portos perguntou se o mestre queria outros jangadeiros para completar a tripulação. Ele disse: "Não, só se for do Ceará. Minha viagem é com cearense, não com pernambucano". Então combinou com Surrão: "Vamos nós dois?" Fizeram uma experiência com a jangada, foram lá fora, torceram de bordo, cruzaram com alguns navios e depois voltaram para o porto. Estavam decididos: se Deus não fosse contra, iriam chegar a São Paulo.
Navegavam e se defendiam dos rochedos submersos. E à noite se aproximavam um pouco mais da costa, por causa dos navios. Sabiam das jangadas que foram atropeladas por navios. A tripulação está cansada, porque trabalhou o dia inteiro e comeu, encosta-se para um cigarro e de repente está dormindo. De noite isso é um perigo. Chegavam, então, às 4 horas da tarde e rumavam para a terra, a fim de se protegerem.
Segundo o mestre, seu começo como jangadeiro foi com jangada de piúba, de troncos de madeira leve. Já a viagem para Ilhabela foi feita em jangada de tábua, de que não gostava muito. Dizia ele que, se virar, afunda. Fica emborcada no nível do mar, com o mastro e a vela no fundo. Basta apoiar nela e fazer a mínima pressão que afunda. E se o mar estiver agitado por ondas mais altas, desce sozinha, fica submersa.
Quando chegaram a São Paulo, foram recebidos pelo então Governador Laudo Natel, que enviou uma carreta para levar a jangada até Brasília. Era o patrimônio, e mestre queria dá-lo ao Presidente - na época, o General Emílio Médici - em troca da aposentadoria para os pescadores do Ceará.
Como vestiam roupas simples e viajavam descalços, fizeram com que eles provassem um terno, um par de sapatos e uma camisa branca. Depois foram acompanhados de um funcionário para o aeroporto. Não sabiam como isso havia acontecido, mas no avião a notícia se espalhou e logo começaram a olhar para eles com curiosidade. Jangadeiros no avião? Teve um que se levantou da poltrona e foi até eles fazer perguntas, muito curioso: "Jangada, é? Como é que pode? Como é que não pode?" Aqui na Capital Federal, foram direto para o Palácio do Governo, cheio de corredores e de funcionários, que os espiavam das portas entreabertas.
O Presidente Emílio Médici vestia roupas civis. Apertou as mãos dos jangadeiros e depois perguntou qual era a finalidade de toda aquela viagem. O mestre respondeu: "Presidente, o pescador cearense está numa situação difícil. A pesca está cada vez pior, os idosos estão abandonados, e é preciso que o senhor nos ampare". E ele, sério, disse umas poucas palavras: "Se está errado, vamos consertar".
O Presidente Médici pode ter sido ruim em outras coisas, como dizem, mas mostrou boa vontade. Parece que se reuniu com alguns Ministros. Depois disse: "Quando vocês voltarem para o Ceará, a aposentadoria para os pescadores já estará vigorando".
O encontro foi rápido, de poucas palavras. Depois apertaram novamente as mãos e se despediram.
Sabem quem ganhou a primeira aposentadoria? O pai do mestre, aos 91 anos de idade. "Pescou a vida inteira e não tinha nada. Nem para remédio, quase nada para comida, coisa nenhuma para doença. Há pescadores que andam por aí sem poder enxergar, os olhos estragados, sem um vintém para comprar uns óculos. É certo uma nação ignorar a velhice de um pescador que alimentou tanta gente?", disse o mestre José Eremilson.
Srs. Parlamentares, o Sr. Eremilson hoje está com 73 anos, mora em Fortaleza, ainda no Bairro Mucuripe, numa casa modesta. Encontra-se doente. Há poucos dias sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), chegando até a ficar em coma. Segundo os médicos, o somatório de sintomas que o fez chegar a esse quadro foi, além da sua idade avançada, o descuido dele com a saúde, agravada pela sua profissão.
Os filhos dão a ele toda a atenção, e não lhe falta o necessário para viver (palavras deles). Porém, estão indignados com o fato de as autoridades do Ceará, e até mesmo do Brasil, não lhe darem a importância devida, já que ele ajudou a escrever um pouco da história do nosso Estado. Têm razão de estarem revoltados, e eu me solidarizo com eles, pois represento o pescador nesta Casa e sei da grande contribuição desse jangadeiro, que arriscou a própria vida em defesa de nossos pescadores. Temos de dar a ele o devido reconhecimento e tentar, de alguma forma, amenizar o sofrimento desse mestre da jangada que tanto nos orgulha com sua coragem de desafiar os perigos do mar e a ignorância de autoridades, em prol do homem que tira da pesca a sua sobrevivência.
Era o que tinha a dizer. "

                                     

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